#4 PROCEDÊNCIA E PROCEDER
Crédito da imagem: Kevin Menajang - Pexels
Se você está chegando nesta edição, vale contar o que pode encontrar por aqui
(nem todas as edições virão com os três tópicos):
📢 análises de campanha: como usar o que aprendi ao longo dos anos e a minha voz para colaborar com um maior letramento em impacto, sustentabilidade e evolução do mercado, no sentido de uma comunicação e publicidade melhores, mais eficazes e menos cegas às questões urgentes e importantes do nosso mundo hoje.
📖 recomendações de leitura: artigos, livros, matérias
🧠 reflexões: geralmente a parte onde conecto vários pontos de informação para elaborar um pensamento mais complexo e que pode ter ou não relação direta com marcas e comunicação mas que, em alguma medida, pode inspirar um insight ou trazer uma nova lente sobre a sociedade em que vivemos.
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#3 Querelas do Brasil
#2 Um ano chamado janeiro/25
#1 Mais uma newsletter?
🧠 As faces do luxo
Durante décadas, a construção de valor no mercado de luxo se apoiou em dois pilares amplamente discutidos: exclusividade e procedência: “Made in France”, “handcrafted in Italy” não são apenas etiquetas; são dispositivos simbólicos que informam preço, desejo e status. O savoir-faire ancestral que imprime autenticidade àquilo que, por definição, deveria ser raro, artesanal, legítimo.
Muito já se escreveu sobre isso, desde como o storytelling territorial molda percepções de valor, autenticidade e prestígio e também sobre a industrialização silenciosa do setor, como Dana Thomas já denunciava em 2008 no livro Deluxe: How Luxury Lost Its Luster. Mas estamos em 2025. E o luxo está, talvez como nunca antes, na berlinda. O que acontece quando a etiqueta é, muitas vezes, a única parte “original" do produto? O que é ser original, aliás? Vale mencionar o backlash que a Chanel sofreu por mostrar o processo de sua fábrica de bolsas em um ambiente altamente asséptico, retirando o véu da magia esperada por seus consumidores. Afinal, qual o ponto médio entre ficção e realidade?
Recentemente, diante de novas tarifas impostas pelos Estados Unidos à China, alguns fabricantes chineses recorreram ao TikTok para expor uma verdade incômoda: são eles que produzem — com qualidade, escala e know-how técnico — boa parte dos itens vendidos sob grifes de alto luxo. São eles que, invisivelmente, sustentam o padrão industrial da opulência global. Enquanto isso, marcas continuam a vender narrativas de origem nobre, descoladas da realidade de suas cadeias produtivas. Essa exposição pública revelou o que muitos preferiam não ver: que a procedência virou, muitas vezes, uma ficção geográfica a serviço do marketing. E que o luxo, tal como vem sendo praticado, depende menos de onde vem o produto e mais de como é ocultado o que o produto vem a ser.
O ponto aqui não é apenas geográfico. É ético.
A crítica não está no fato de o produto ser feito na China, mas na escolha deliberada de manter invisível esse percurso — e, mais ainda, de precarizá-lo. Porque não basta perguntar de onde vem. É preciso perguntar como foi feito. Quem produziu, em que condições, com quais direitos, com qual impacto ambiental, com qual transparência, com qual remuneração (versus o preço final cobrado). O luxo que se pretende relevante neste século não pode mais dissociar a estética do ético, nem o símbolo do sistema.
Procedência sem proceder é só marketing colonialista embalado em storytelling premium.
O que proponho aqui é deslocar o eixo da discussão: menos sobre exclusividade simbólica, mais sobre responsabilidade sistêmica. Enquanto o mercado de luxo continua investindo milhões em branding e proteção de imagem, raramente vemos as marcas responderem com a mesma intensidade quando a cadeia de valor é colocada em xeque.
Enquanto debate sustentabilidade, circularidade e ESG como buzzwords, o caso dos fabricantes chineses nos coloca diante de uma questão mais profunda: a reputação das marcas será construída, cada vez mais, não apenas pelo que dizem sobre si, mas pelo que fazem quando acham que ninguém está olhando. Mesmo algumas análises que denunciam o greenwashing ainda se limitam à relação entre marca e consumidor. O que me interessa aqui é outro elo: o que existe entre marca e produtor. E a inversão que o episódio causou.
Vimos o futuro do luxo sendo posto em xeque pelas mãos de quem o produz. Literalmente.
Felizmente, algumas marcas têm mostrado que é possível alinhar procedência e proceder de forma ética e transparente:
Chloé (França): Sob a direção criativa de Gabriela Hearst, a Chloé tornou-se a primeira maison de luxo a conquistar a certificação B Corp, em 2021. Desde então, adotou métricas públicas de impacto social e ambiental, reorganizou sua cadeia de fornecimento com foco em comunidades locais e aumentou o uso de materiais de baixo impacto.
Veja (França/Brasil): Embora seja mais "cool" do que "luxuosa" no sentido tradicional, a Veja é um caso emblemático de construção de desejo com base em transparência radical, uso de materiais sustentáveis (borracha amazônica, algodão orgânico) e cadeias produtivas auditáveis. É usada por celebridades globais, da Meghan Markle a Emily Ratajkowski.
Stella McCartney (Reino Unido): Desde sua fundação, a marca rejeita o uso de couro, peles e outros materiais de origem animal. Investe em materiais inovadores, como couro de cogumelo e poliéster reciclado, e publica relatórios ambientais detalhados. Em 2021, lançou a campanha “Future of Fashion: An innovation conversation” durante a COP26, como um chamado à regeneração do setor.
Catarina Mina (Brasil): A marca cearense de bolsas artesanais é pioneira no Brasil em abrir publicamente os custos de produção, através de “Uma Conversa Sincera”. Trabalha com mais de 450 artesãs no Ceará, valorizando técnicas ancestrais como o crochê e a renda de bilro. Além disso, criou uma Célula de Impacto Socioambiental Positivo para mensurar e garantir a transparência de suas ações e criações, afetando direta ou indiretamente mais de 980 pessoas em comunidades locais.
Essas marcas não operam apenas no campo simbólico — atuam também na materialidade do impacto. Valorizam tanto a procedência quanto o proceder, alinhando estética, ética e transparência.
E talvez esse venha a ser, cada vez mais, o verdadeiro luxo do nosso tempo: aquele que respeita e valoriza todas as mãos que o tornam possível.
📢 Dom de iludir e a delícia de ser quem se é
Duas campanhas foram muito debatidas no último mês e arrancaram comentários tão opostos quanto interessantes. Mas, em ambas, o que há de relevante para essa edição sobre procedência e proceder é o quanto seus protagonistas mantiveram-se firmes ao seu posicionamento como artistas e pessoas - e o quanto foi exatamente essa transparência e autenticidade o diferencial e fator marcante.
De um lado, Felipe Neto. Em um discurso recheado de falas contundentes, lançou uma pretensa candidatura à presidência. Não é de hoje que o influenciador vem se posicionando de forma mais presente em temáticas políticas. Logo, para os mais desatentos, o discurso soou crível, chegando a confundir parte da imprensa mais afeita ao furo do que à checagem. No entanto, para os que que tiveram olhos de ver, a fala vinha recheada de referências a um clássico da literatura contemporânea - o livro 1984 de George Orwell. A ação era parte do lançamento de seu conteúdo na plataforma Audible, da Amazon e foi criada pela agência Live.
De outro, Maria Bethânia em um comercial de produtos para controlar o frizz, arrepiando os cabelos de quem sempre enalteceu sua convicção em não domar os fios. Traição? Pelo contrário: vimos quase incrédulos a cantora dizer que nunca usaria o produto, enquanto o segurava diante de uma Sabrina Sato sorridente e impecavelmente alisada (e aqui não me refiro apenas às melenas). E, ainda, defendendo o direito de quem o quisesse usar. Uma campanha para Tresemmé criada pela agência OOO.
Em comum, ambos mantiveram-se firmes a quem são: Felipe havia recentemente anunciado um afastamento de temas políticos (sendo que nunca se candidatou) e Bethânia até então mantinha-se fora do circuito publicitário. E foi justamente a coerência no seu proceder que possibilitou que pudessem ser lúdicos e brincar com suas próprias convicções garantindo, no caso de Felipe, o dom de iludir e, no de Maria Bethânia, a delícia de ser quem se é.
📖 Entre auto exposição e hiper vigilância, a imagem
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O show do Eu - a intimidade como espetáculo, Paula Sibilia - um retrato da evasão de privacidade a partir das redes sociais em busca, paradoxalmente, da experiência de intimidade perdida justamente por conta da midiatização da vida cotidiana.
1984, George Orwell - a mais célebre distopia sobre o avanço da tecnologia de hipervigilância em estados autocráticos e as consequências para as relações humanas
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